domingo, 26 de julho de 2020

Afinal quanto ecológico é um Veículo Eléctrico? (2ª Parte)

Na segunda parte deste artigo (ler 1ª Parte) vamos fazer uso da matemática e calcular qual o impacto real em termos de emissões de Dióxido de Carbono na utilização de um veículo eléctrico, e vamos compará-lo com um modelo equivalente a combustão.
Muitos estudos foram foram feitos nos últimos anos apontando como conclusão que um carro eléctrico acabava por ser tão ou mais poluente que um equivalente a combustão muito por causa da produção da bateria. No entanto, vários erros eram cometidos nesses "pseudo" estudos fazendo com que as conclusões fossem de certa maneira forjadas. Como por exemplo, chegava-se a comparar as emissões de um carro eléctrico de alta gama com uma bateria das maiores do mercado com um a diesel de segmento inferior, e apenas olhando às emissões do tubo de escape sem considerar também que há a variável da refinação do combustível e a produção do próprio automóvel que deve ser incluída nos cálculos:
  • Os veículos comparados não eram equivalentes: chegava-se a comparar um Tesla Model S com bateria de 100KWh com um carro a combustão de classe diferente mais económico;
  • Não era considerada a diferença na produção de um carro eléctrico (sem a bateria) com o equivalente a combustão. Um carro eléctrico, mecanicamente, é mais simples com muito menos peças móveis que a variante a combustão;
  • Também não eram consideradas as emissões decorrentes da refinação do combustível, que é mais uma variável a ter em conta para uma comparação justa;
  • Os dados utilizados para fazer os cálculos eram de países onde a maioria da electricidade era proveniente de fontes não renováveis. Embora fosse comum há 3 anos a maioria da energia eléctrica vir do carvão e outras fontes de origem fóssil, hoje em 2020 a realidade é muito diferente com a maioria dos países da Europa a utilizar pelo menos 50% de electricidade verde.
Por isso, em vez de apontar outros estudos com resultados diferentes, proponho sermos nós próprios a fazermos a matemática e tirarmos as nossas próprias conclusões.
Em primeiro lugar, devemos considerar todos as variáveis envolvidas para que os cálculos sejam minimamente imparciais. Como referência, vamos considerar um veículo intermédio de segmento B em todos os números iniciais que vamos definir (consultar as referências no fim do artigo):
  • Impacto da produção do automóvel (sem bateria): para um automóvel eléctrico vamos definir 6 toneladas e para o a combustão 6,7 toneladas de CO2 resultantes da sua produção;
  • Impacto da produção da bateria (apenas para o veículo eléctrico): vamos usar números de 2020 onde cada KWh envolve 60-100 Kg de CO2. Consideremos o valor mais pessimista de 100 Kg/KWh;
  • Impacto da refinação do combustível (apenas para o veículo a combustão): considerando que para refinar um litro de gasolina uma refinaria gasta em média 1KWh, isto corresponde a incrementar cerca de 30% às emissões por km. Este valor não é difícil de deduzir: se considerarmos que uma central a carvão emite 650 gCO2/KWh, um automóvel que consome 6,0l/100km (ou 0,06l/km), usando a relação de 1KWh para cada litro de gasolina, corresponde a um incremento de 650x0,06=39 gCO2/km a adicionar às emissões do tudo de escape. Para um carro que emite 130 gCO2/km corresponde exactamente a 30%. No entanto, vamos usar 26% de incremento para seguir os valores indicados nas referências deste artigo;
  • Pegada de CO2 na produção de electricidade usada para carregar o carro eléctrico: uma parte da electricidade usada para carregar a bateria provêem de fontes não renováveis como o carvão, gás natural ou mesmo queima de combustível. Vamos considerar 300 gCO2/KWh para a realidade de Portugal em 2020 (consultar electricitymap.org);
  • Perdas na rede de distribuição e no processo de carregamento: por questão de imparcialidade, vamos considerar 10% de perdas na rede eléctrica mais 10% no carregador, somando um total de 20% de perdas que devemos acrescentar ao consumo do veículo eléctrico.
Como referência vamos usar o novo Opel Corsa de 2020, em que existe tanto a verão eléctrica como a combustão (Detalhes do Opel Corsa 2020):
- Consumo na variante a gasolina: 6,0 l/100km ou 0,06 l/km
- Emissões na variante a gasolina: 130 gCO2/km
- Capacidade da bateria na variante eléctrica: 50KWh
- Consumo da variante eléctrica: 16 KWh/100km ou 160 Wh/km
- Considerando 20% de perdas no consumo eléctrico: 200 Wh/km

Emissões da variante eléctrica:

Para uma bateria de 50KWh com uma pegada de 100 KgCO2/KWh, só a bateria é responsável por 5 toneladas de CO2 emitidas para a atmosfera. A isto é necessário acrescentar a produção do automóvel eléctrico que são 6 toneladas. Por isso, só a produção deste automóvel com bateria incluída são 11 toneladas de CO2.
A este valor é necessário acrescentar a pegada ecológica da electricidade usada para carregar a bateria ao longo do ciclo de vida do automóvel. Considerando 300 gCO2/KWh na energia eléctrica utilizada para um veículo que consome 200 Wh/km em média, isto corresponde a 60 gCO2/km. Considerando y como a distância percorrida em múltiplos de 1000 km, esta é a expressão do impacto nas emissões da variante eléctrica:

Emissões_VE = 11.000 + 60·y   (KgCO2/1000km)

Quando o carro foi comprado já foram emitidas 11 toneladas de CO2, e ao fim de 200 mil km teremos sido responsáveis por quase 23 toneladas de CO2 emitidas para a atmosfera.

Emissões da variante a gasolina:

Para o carro a gasolina as únicas emissões iniciais estão relacionadas com a produção do automóvel, que neste caso são de 6,7 toneladas de CO2.
Cada km percorrido corresponde a 130 gCO2, que temos de acrescentar 26% resultante da refinação do combustível. Estamos a falar de um total de 163,8 gCO2/km.
Com y sendo a distância em milhares de km, esta é a expressão que calcula as emissões totais de CO2 do veículo a gasolina:

Emissões_ICE = 6.700 + 163,8·y   (KgCO2/1000km)

Quando o carro é novo apenas foram emitidas 6,7 toneladas de CO2, mas ao fim de 200 mil km as emissões acumularam-se para 39 toneladas de CO2. Para esta distância já nos excedemos do valor do carro eléctrico em quase o dobro!
Se formos calcular a distância percorrida em que o veículo eléctrico passou a ser mais limpo que a variante a gasolina, apenas temos de calcular a seguinte equação:

Emissões_ICE > Emissões_VE
6.700 + 163,8·y > 11.000 + 60·y
y·(163,8 - 60) > 11.000 - 6.700
y > (11.000 - 6.700) / (163,8 - 60)
y > 41.426 km

Ou seja, após 42 mil km o carro eléctrico torna-se mais limpo que a versão a gasolina, e a partir daí a diferença é cada vez maior.

Opel Corsa-e vs Corsa gasolina:
https://www.desmos.com/calculator/bxruwx4qxm


Outros exemplos:

Se usarmos como referência um carro de segmento A mais económico e com bateria mais pequena, esta fronteira reduz-se ainda mais. Para o VW e-up com uma bateria de 35KWh e um consumo médio de 140 Wh/km, ou 175 Wh/km com perdas incluídas, e com emissões de 52,5 gCO2/km na variante eléctrica, ou 110+26% gCO2/km na variante a gasolina, a partir de 33 mil km torna-se mais limpo:

Emissões_VE = 9.000 + 52,5·y
Emissões_ICE = 6.200 + 138,6·y   (KgCO2/1000km)

VW e-up vs VW up gasolina:
https://www.desmos.com/calculator/sgmbsam9ep


Poderíamos fazer as mesmas contas para um automóvel de gama alta como um Tesla Model S com uma bateria de 100 KWh, mas não nos podemos esquecer de comparar com um equivalente do mesmo segmento que necessariamente terá de consumir e poluir mais para cada km percorrido. Como exercício interessante, vamos fazer na mesma essas contas:
Consideremos o Tesla Model S com consumos médios de 180 Wh/km, ou 225 Wh/km com perdas incluídas, e emissões de 67,5 gCO2/km. Para uma bateria de 100KWh temos um impacto de 16 toneladas na produção do automóvel com bateria incluída, e ao fim de 200 mil km teríamos quase 30 toneladas de CO2 emitidas:

Emissões_VE = 16.000 + 67,5·y   (Kg/1000km)

Consideremos agora um carro equivalente a gasolina (segmento D) com emissões na ordem dos 160+26% gCO2/km. Embora inicialmente apenas tenhamos 6,7 toneladas de CO2, ao fim de 200 mil km tería já emitido 47 toneladas de CO2:

Emissões_ICE = 6.700 + 201,6·y   (KgCO2/1000km)

Para este exemplo em concreto, ao fim de 70 mil km o Tesla começaria a ser mais limpo que a versão a gasolina. E note-se que para esta gama de carros, é suposto fazerem-se várias centenas de milhares de km.

Tesla model S vs Segment D equivalent:
https://www.desmos.com/calculator/df42yow9x0


Conclusões:

Tendo em conta estes números, aquele argumento de que por causa da bateria o carro eléctrico tornava-se tão ou mais poluente que os carros a combustão, cai definitivamente por terra. É importante que se note que uma bateria pode potencialmente durar bastante mais que 10 anos podendo chegar aos 20 ou mesmo 30 anos se considerarmos que ela pode sempre ser reutilizada para outros fins menos exigentes até ser definitivamente entregue para reciclagem, pelo que o impacto inicial na sua produção torna-se menos significante. Além disso, acredita-se que daqui a 10 anos comece a ser rentável produzir novas baterias a partir de material reciclado oriundo de outras mais antigas, pelo que o seu impacto tenderá a ser cada vez mais pequeno.

Na 3ª parte deste estudo, vamos analisar como a origem da electricidade é importante para que os veículos eléctricos se tornem verdadeiramente sustentáveis.
Clique aqui para seguir para a 3ª Parte.

Referências:
https://www.electricitymap.org/
https://www.motor24.pt/marcas/novo-opel-corsa-vontade-ser-referencia/743586/
https://www.wattson.pt/carros/opel-corsa-e/
https://www.wattson.pt/carros/volkswagen-e-up-2020/
https://www.wattson.pt/carros/tesla-model-s-performance-2019/
https://zero.ong/carros-eletricos-emitem-menos-66-e-68-de-co2-que-carros-a-gasoleo-e-gasolina-respetivamente/
https://www.uve.pt/page/emissoes-de-co2-mito-desfeito/
https://www.uve.pt/page/ve-vs-vci/

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